Não gosto de tomar banho
Sinto que cada vez que o faço aquele que sou e que fui se
vai pelo ralo.
E tenho medo.
Tenho medo porque não sei quem sou e desconheço a nova
película que me dá forma.
Olho ao espelho e tudo parece igual, mas não é. Estou
diferente, sou diferente. Tenho uma nova camada. Um novo conjunto de células
que se formou e teima em me manter aqui. Se elas não existissem eu seria
energia, seria ar, estaria em todo o lado sem deixar de estar aqui também.
Quero ser dono do mundo, conhece-lo, senti-lo, olha-lo… mas não consigo, esta
membrana, que se escama e se vai pelo ralo, não me deixa estar em todo o lado. Mas
agora que penso nisso… eu faço parte de tudo e de todos, estou na água que
percorre o mundo, essência da vida, estou na água que segue para os esgotos e
completa o ciclo que dá a vida. Afinal eu percorro o mundo, os céus, encho as nuvens
e sou transportado pelo vento. Caio sobre os corpos desprevenidos e fundo-me
com as suas peles. Estou nos salpicos de alegria que as crianças criam quando,
em dias de chuva, saltam sobre as poças de água enlameada. Sou ambiente de
leitura e romance quando bato nas janelas e nas persianas. E vendo bem as
coisas, voamos todos juntos, as nossas células que supúnhamos mortas, vivem
juntas e entrelaçadas por esse mundo fora e tudo porque tomámos banho e nos
deixamos ir pelo ralo.
Não me conheces, mas eu já
acariciei a tua pele. Não me conheces, mas já desci pela tua boca. Não me
conheces, mas já afaguei os teus cabelos. Parte de mim já tocou o teu corpo e
ficou agarrada a tua roupa, levaste-me para casa, para a tua casa, recebeste-me
e tornaste-me parte da tua vida. E no
fim libertaste-me num banho que tomaste e me atiraste para o ralo, sem dares
valor ao meu acariciar de pele, ao meu gotejar na tua boca e ao passar pelos
teus cabelos. Mas, sem dares por isso, parte de ti, parte agora com parte de
mim, juntos partimos pelo mundo.